FILE 2025
TEXTO CURATORIAL
SYNTHETIKA:
a simbiose
criativa
Como propôs Ricardo Barreto, se Hegel definiu o “espírito do tempo” como Zeitgeist, hoje vivemos sob o signo do Zeitsynthetik — o tempo do sintético. Nossa era não é mais regida apenas por ideologias ou espiritualidades, mas por tecnologias disruptivas que dissolvem fronteiras entre o humano e o artificial, o orgânico e o digital. A arte, longe de ser mera representação ou crítica, tornou-se um campo de simbiose criativa, em que algoritmos, inteligências artificiais e corpos biológicos coabitam e coevoluem.
A exposição do FILE 2025 celebra a SYNTHETIKA, uma estética emergente que transcende as dicotomias da modernidade e o pastiche pós-moderno. Aqui, a criatividade não é mais exclusivamente humana: é uma dança entre artistas e sistemas generativos, entre gestos ancestrais e redes neurais. As obras selecionadas revelam a interatividade desenvolvida conjuntamente à evolução tecnológica. Dentro da ambiência visual e sonora fabricada por IAs em Transformirror (de Daito Manabe e Kyle McDonald), o passado sintetizado é reinterpretado pela experimentação de uma nova fisicalidade em que todos os elementos imagéticos são transmutáveis e gerados a cada gesto.
A IA não é apenas ferramenta, mas parceira, desafiando noções de autoria, originalidade e sensibilidade. Os videoclipes The Noise of Art, Freeda Beast e Liberation, desenvolvidos por meio de redes adversárias generativas (de Mario Klingemann), evocam a vanguarda da apropriação do aprendizado profundo e sua introdução na criação do artista. I am I (de Gioula Papadopoulou e Olga Papadopoulou) apresenta avatares digitais que questionam a senciência existencial e Aquarela de Íons (de Arthur Boeira e Gustavo Milward) traduz dados solares em paisagens sensoriais.
Na mostra FILE 2025 SYNTHETIKA, o sublime já não está na natureza ou nas máquinas, mas no entrelugar onde elas se fundem. Fractalicius (de Julius Horsthuis) transforma equações matemáticas em universos cinematográficos; Deep Paula (de Erika Kassnel-Henneberg) ressuscita memórias através de algoritmos, expondo a fragilidade da percepção; a desconfortável vigilância diante dos novos corpos digitais em //:Are you observing or being observed? (de Vitória Cribb) nos avisa sobre a nossa presença digital e os novos limites da materialidade; Newton’s Cradle (de Jeff Synthesized) recodifica o tempo como mercadoria em um futuro distópico. Até os fungos de Mycelium (do coletivo Ultravioletto) e as criaturas pós-humanas de Meka Talks (de Koral Alvarenga) propõem inteligências não humanas como modelos de reorganização social e ecológica.
Em face dos novos paradigmas ecológicos, Spiral of Time (de Edwin van der Heide), Visual Bird Sounds (de Andy Thomas) e OUVIR (de Craca) utilizam registros documentais da vida natural para simultaneamente aproximá-la da nossa percepção sensorial e desconstruí-la para propor novos espaços de navegação criativa dentro de ecossistemas familiares. Por outro lado, o olhar crítico e prospectivo de The Hunter and Dog (de Frederik De Wilde) contesta esse mundo pós-natural e biotecnologicamente projetado em que a edição de DNA (CRISPR) pode controlar a evolução biológica e tecnológica.
Este é um manifesto para uma arte pós-antropocêntrica, onde a sinteticidade — a hibridização radical de corpos, dados e ambientes — redefine o próprio ato de criar. A brincadeira de adivinhação entre o artista e a IA em Unreal Pareidolia (de Scott Allen) demonstra que a programação pode ser um orientador que possibilita uma “imaginação expandida” para a exploração de gaps criativos. Se a modernidade cultuou o novo e a pós-modernidade ironizou o cânone, a SYNTHETIKA dissolve ambos em um fluxo contínuo de recombinações algorítmicas. O artista agora é um engenheiro de prompts, um coreógrafo de sistemas, um xamã de redes.
Nos limites ficcionais expostos em Boundaries (de Memo Akten e Katie Peyton Hofstadter), percebemos que a humanidade reconhece a si mesma por meio da coletividade alcançada pela visualização de dados e vive uma jornada de autopercepção e interconexão macrológica e micrológica. ReCollection (de Weidi Zhang e Rodger Luo) demonstra que a IA conecta línguas para revelar que compartilhamos a experiência do que é humano e nos emocionamos com memórias similares, coletivas.
A seleção de obras nesta exposição — desde os mundos fractais de Julius Horsthuis até as distopias algorítmicas de Jeff Synthesized — ecoa o princípio da Zeitsynthetik: uma era onde a tecnologia não serve à arte, mas com ela se confunde, gerando paisagens de uma beleza desconhecida. Aqui, cada peça é um nó em uma rede maior, um experimento sobre como criar quando a inteligência é coletiva, distribuída e, acima de tudo, artificialmente selvagem.
Bem-vindos à era em que a arte não imita a vida, mas a sintetiza.
Paula Perissinotto
Cocuradora e Cofundadora
FILE – Festival Internacional de Linguagem Eletrônica
Clarissa Vidotto
Cocuradora do
FILE – Festival Internacional de Linguagem Eletrônica